top of page

O que eu seria numa ceia de natal?


por Alexsandro Souto Maior


Por esses dias eu estava pensando na ceia de natal. Pensei na divisão dos pratos entre os familiares, pensei nos pratos tradicionais e nas mãos de fada que dão um gosto terno e saudosista a eles. Tudo parece muito ritualístico. Basta se lembrar da escolha da melhor travessa, lembrar-se da decoração da mesa com suas frutas expostas ali até o primeiro raio de sol. Nesse ritual familiar, não pode ficar de fora os dissabores postos à mesa para nos recordar também de nossa humanidade. Preso ao simbolismo dessa festa, imaginei mais precisamente a possibilidade de sermos parte desta ceia, integrantes dela.

Já imaginou quem seria a rabanada, por exemplo? Aquele prato que para ser feito, ele precisa de pão dormido, cuidados mil, e que vai adoçar o paladar ocre de alguns na “noite feliz”. Já pensou em quem poderia assumir o papel de queijo do reino? Uma comida cara, cheia de pompas e desejada por tantos. E a salada? Veio à mente crianças ignorando o colorido, o sabor dela e quiçá alguns adultos passando bem longe. De fato, não é fácil ser salada diante de tantas opções. E se eu fosse um panetone? Gostoso, mas cheio de indesejadas frutas cristalizadas e passas. Quando pequeno, catava todas elas, menos as passas. Talvez esse recheio represente as conversas, os hábitos daquele que aparece de quando em quando nas festas da família. O que falar daquele bolo que não pode faltar, preparado com muito esmero, amado por crianças e adultos? Prato indispensável na festa. O que dizer do arroz com passas? Aquele que as pessoas terão o trabalho de catar as passas e colocarem no canto do prato. Acho uma injustiça ver o que sofrem as passas durante o Natal. O ingrediente está em quase toda a ceia, exercendo a sua onipresença. Sendo indigesto por uns e apreciados por outros. Quem seria a polêmica uva-passa em sua família? Há pratos que entram muito menos que a pobre uva-passa. Sabe aquele que pegou no forno? Ou que seus ingredientes não casaram tão bem a ponto de você não passar da primeira garfada? Nem adianta idealizar. Esses pratos sempre existirão. E o queijo frio acompanhado do presunto? Reservados, porém desejados. Não mais almejado que a sobremesa. Ela sempre é a populista, algumas vezes provoca até confusão ou inúmeros afagos. Não posso me esquecer do salpicão. Tão misturado! Doce e salgado, uma iguaria popular! Que ente querido tem cara de peru? Disputado por quase todos. Ainda tem o leitão com aquela cabeça posta na travessa para nos dizer que há espaço para o bizarro na ceia. Por momento, veio-me a imagem da farofa, coadjuvante do frango assado, quiçá figurante. Talvez fique sobre a mesa a noite inteira, sendo lembrada por poucos. A farofa não estaria sozinha. Certamente não. Dividiria o mesmo espaço com as frutas. A diferença talvez é que as frutas emprestariam sua cor, seu sabor à ceia, mas murchariam ou perderiam um pouco da cor, do sabor ao amanhecer. Mas os ébrios as provariam no dia seguinte, sedentos para curar seus excessos. Nem tudo são luzes.

Em toda ceia há sempre o prato mais aguardado. Aquele que muitas vezes dá sentido à própria noite de natal. Aquele que nem champanhe rouba a cena com o seu brinde à paz e à saúde. O prato que reúne todos em volta. Esse talvez seja o símbolo de alguma matriarca ou de um pai muito dedicado no propósito de alegrar, de amar a todos. Um prato que sempre vai ser o mais genuíno sinônimo de Natal.

E se faltasse algum desses pratos na sua ceia? Não adianta encomendar na padaria outro que o substituísse. Você bem sabe que aquele sabor é inigualável. O quebra-cabeça da vida pode se revelar na busca da peça que um dia compôs e deu sentido ao natal. Há também, por esse Brasil, mesas vazias que esperam por qualquer prato, até mesmo o arroz com passas, abandonado por muitos, um prato qualquer mesmo que tenha algum dissabor. Mesas sem ter o pão diário, muito menos um pão revestido de canela e açúcar para comer com café! Nessas mesas, talvez o único ingrediente seja um naco de fé revestido de dor e de saudades. Imagine ser um ingrediente na mesa dessa família! O natal também tem sabores que o nosso paladar desconhece.




104 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page