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O tempo é um bicho buliçoso

Atualizado: 7 de ago. de 2023




Por Alexsandro Souto Maior


Pilha de livros, um zunido no domingo, relações gastas pelo sol ou pela chuva, as pálpebras pesando por noites que se acumulam no corredor de tanta coisa ansiada. Uma vontade descomunal de silenciar o zunido ao menos ou o infernal objetivo de cair num sono profundo e atropelar o presente. Os desejos também se acumulam. Não tenho habilidades para o presente. O presente parece apressado demais e eu sou um sedentário correndo o risco de bater as botas a cada vã corrida – Imagens disformes de um hipertenso com histórico na família – Faço-me no entretempo do que testemunhei ou do que quero testemunhar: as cartas, goiabada com banana na casa de dona Penha, domingos festeiros na casa de minha avó, as idas ao campo de futebol com meu pai.

O tempo é um bicho buliçoso. Ele nos cutuca até um sorriso se alargar ou uma lágrima correr sem destino. Talvez esta crônica seja mais um desses episódios do homem e sua eterna insatisfação com o seu tempo como registrou Wood Allen na criação do filme Meia-noite em Paris e, justamente, com um escritor protagonizando o desejo por um passado longínquo, cheio de grandes escritores no seio da Belle époque. Toda vez que Gil, interpretado por Owen Wilson, mergulha no tempo por uma carruagem, ele se depara com um tempo em que os homens dali gostariam de estar também num outro período mais antigo. Por trás dessas arrumações sintéticas, estéticas e mnemônicas podem estar sintomas de alguma alegria ou um mar mais profundo de terapias e ansiolíticos. Confesso que gostaria de estar num outro tempo.

Hoje, vejo tudo se aligeirando. Parece que tudo está correndo para lugar nenhum ou para o seu próprio fim. Correr para apanhar o ônibus caro e medonho, correr para ir trabalhar, correr para dormir, correr para se deitar seja lá com quem for, correr para se automedicar, correr para postar e se engajar, correr para comer, comer correndo, amar correndo, lembrar correndo, pois parece que ninguém tem mais tempo. Talvez, por isso, alguém se esqueceu do aniversário de um amigo, do abraço de uma tia, de escutar alguma mensagem e de comentar no feed sobre alguém que partiu.

O meu pai partiu há, exatamente, catorze anos. Não existia um feed do Instagram pra comentar. Ainda bem! Tenho a impressão de que corríamos menos. Não da mesma forma de quando eu era criança e ele, de quando em quando, brincava comigo de bola de gude e se fazia de morto-vivo, mesmo período em que se ausentava das festas de escola. É bem verdade que sua presença se dava em outros momentos memoráveis, por exemplo, ao escutarmos o jogo de futebol pelo rádio vermelho e branco sobre a penteadeira. Era confortável aquele tempinho. O tempo era outro! Outra expressão gasta. Criávamos galos no quintal de casa e éramos acordados por eles, não por um despertador ou alarme. É preciso ressignificar o tempo com todas as ausências que houver: sem a goiabada, sem a avó, sem o pai, sem o tempo mais tátil e mais virtual. Não sou bom de conselhos e agora que é domingo e a esfinge já me devorou, pense que quando houver abraço, abrace demoradamente; que quando houver sorriso, estique até onde der; que quando houver calor, seja calor também para si e para o outro. Vai que amanhã sua filha não goste mais de desenhar fadas e borboletas e não queira mais brincar de boneca com o pai dela por estar muito grande...


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